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Sempre Mais do Mesmo

17-11-2010 23:18

 

 

   

    Eles andaram lado a lado quase sem perceber que estavam em direções opostas. Ele porque era lento, ela apenas distraída.

    Claro que não começou assim. Tiveram bons tempos, não se pode negar. Depois dos cinco primeiros anos descobriram que ela era estéril. Uma notícia que abalou a harmonia da vida dos dois. Não que ela quisesse ter filhos, jamais se imaginara mãe. Até pensou que se sentia aliviada, mas tinha uma ponta de melancolia. Uma criança movimentaria os dias. Para ele a notícia soou como uma tragédia. Pensou até em terminar o casamento, mas não era um cafajeste pra largar a mulher que amava por causa daquilo. Amava?

    O silêncio foi se tornando constrangedor. Almoçavam em horários diferentes. Ela já não o esperava para dormirem juntos. Ele, por vezes terminava a noite no bar com os colegas de repartição. Traições? Não, não haviam. No máximo umas revistas masculinas pra não morrer de estresse. E ela sabia que não havia outra mulher. E sabia também que nem se importaria se houvesse, tão distraída que era. Não brigavam, sequer discutiam.

    Há muito acabara aquela época gostosa de namoro, cheia de ciúmes e emoções fortes. As conversas giravam em torno da TV, de vez em quando falavam mal de algum parente, do trânsito, da violência. Ela não trabalhava, alternando seu tempo entre televisão e leituras que lembravam, nostálgicas, a época de escola. Aos poucos, os livros foram ficando gastos, e até as lembranças repetitivas. Mas ela não encomendava outros.

    A televisão cansou, mas ela já não saía. Às vezes passava um mês dentro de casa, sem a menor vontade de pôr os pés na rua. Ele sugeriu uma empregada para cuidar de tudo, mas ela não quis. Passou a sair semanalmente para abastecer a casa, pois a idéia de uma estranha tagarela a apavorava a tal ponto que preferiu voltar a cuidar de tudo.
Quando saiu na rua, teve a sensação de que estava perdida no meio dos acontecimentos e das vidas das pessoas. Tudo mudava, menos ela. Passava horas na janela, com a sensação mágica que as coisas existiam mesmo. As crianças, os adolescentes. Todos vivos como cachorrinhos, correndo, pulando, gritando. Ela o esqueceu. Até bom dia deixou de dizer. Não por maldade, mas porque não se lembrava mesmo, tão concentrada que estava em todo aquele mundo mágico de quase um metro que dava para ver pela janela.

    Na cabeça dele, era tudo muito claro. A esterilidade a tinha tornado seca, deprimida; ela ainda estava abalada com a notícia, em breve essa indiferença iria passar. Ele esperou sem se desesperar durante 15 anos. Ela só piorava. Ia morrendo aos poucos. Morria com a ignorância das pessoas no mercado, morria com a beleza das ruas, morria quando se olhava no espelho: quase 40 anos, meu Deus! Morria com o cheiro de cebola e alho que persistia o dia inteiro em suas mãos, morria ao pintar os brancos cabelos de preto, morria ao reler os livros de escola, tantos sonhos, eu poderia ter sido tanta coisa, feito tanta coisa, eu poderia...

    Ele não sabia, mas era apenas um figurante de toda aquela morte. Por não saber começou a se culpar, era claro, era óbvio. Tentou se distrair. Há muito não via um filme com a Demi Moore, nem bebia, nem fumava. Voltou a sair com os colegas, a derramar mágoas e segredos de liquidificador em mesas de bar. Voltou a fumar, sim.

    Foi tudo se amontoando mais uma vez. E cada vez que isso acontecia, era mais peso pra agüentar. A cara da Demi Moore sempre em sobressalto. A cerveja que ficava mais azeda a cada gole – ou mais doce, mais insuportável – Marlboro Filter Plus – mais tabaco, menos tempo de vida –, a esposa que o esperava em casa, tão bonita, sempre dormindo, que agora já nem olhava pela janela. Cartelas de Lexotan vazias na cabeceira, ela já não se dava o trabalho de esconder. Também ele morria aos poucos, um enfisema, câncer de próstata, derrame, hepatite, aposentadoria forçada, a esposa passando um pano úmido na sua testa, o pano úmido, os olhos dela tão secos olhando para o nada, tão bonita, o que é que a gente virou, onde é que a gente foi parar, calafrios, escuro, falta de ar.

    Morreu. A família chorosa, a bela viúva há tanto tempo calada que já tinha desaprendido a falar. Anos de silencio, de acolhimento.
O enterro aconteceu num dia de chuva, o dia úmido e os olhos dela tão secos que a família comentava o quão insensível era a vagabunda. Coitado do marido, homem tão honesto, um exemplo. Claro que ela não sofria. Mas sofria.

 

Por: Marina Maria

 

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